Este mês o espaço Lugar de Falas conta a história da criadora Raquel Nery (@raquelneryof) para celebrar o abril azul e o dia mundial da conscientização do autismo. Ela é criadora na plataforma e estudante de medicina, seu conteúdo mostra principalmente sua rotina e conta com mais de 60 milhões de curtidas e 1 milhão e meio de seguidores.

Conte-nos um pouco sobre sua história de vida e trajetória na internet.

Eu tive uma infância bem simples. Basicamente não tive acesso à internet, nem brinquedos, porque minha família tinha muita dificuldade financeira. Meus pais eram bem protetores, então nunca brinquei na rua, nem nada do tipo. Por ficar muito tempo em casa, eu acabei aprendendo a tocar violão, desenhando e lendo livros. Minha mãe trabalhava de auxiliar na minha escola, até terminar a faculdade de pedagogia e se tornar professora. Mesmo sendo auxiliar, ela ganhava livros da escola e sempre me dava para eu completar. Quando eu estava no quarto ano, minha mãe pegava livros do quinto, sexto para mim, porque eu sempre fui muito avançada nos estudos. Os livros da minha turma acabavam sendo muito monótonos e eu ficava entediada. Minha infância basicamente foi estudar muito, ficar com dois irmãos, ler muito. Pratiquei muita coisa, como: cantar, tocar instrumentos, desenhar e escrever. Aprendi a escrever com as duas mãos.

Ao fim do ensino médio, decidi cursar Biomedicina, mas eu não gostei. Sempre fui muito desmotivada com as aulas, porque eu não via motivo de estar ali, pois não era o curso que eu idealizava. Eu pensava que eu iria gostar da química, do laboratório, do contato com a saúde e pouco contato com humanos. Mas eu detestei porque eu gosto do contato com humano, apesar de não ser boa. Eu gosto de dar atenção, gosto de descobrir os problemas das pessoas e eu gosto de ajudar. Não fazia sentido eu continuar num curso que me deixava infeliz, então após a pandemia eu fiz o Enem. Estudei muito, muito, muito, muito. Eu estudava mais de 16 horas por dia, com muito foco, fazia até live no TikTok estudando. Em 2020, passei na Universidade Federal da Paraíba, em Medicina. Muita gente acha que eu só passei porque eu sou autista. Não, eu não usei a cota de pessoas com deficiência, usei outras cotas, usei cota racial, cota social e cota de escola pública, mas de pessoas com deficiência, não usei. Eu queria muito ter passado no UFRN, por ser do meu estado e mais perto de casa, só que eu não consegui. Eu fiquei muito triste, chorei muito, mas não foi uma tristeza tão grande porque eu tinha passado em medicina de qualquer forma, só que não na universidade que eu queria, mas eu não tinha dinheiro, condições de me manter na Paraíba, ainda mais alguém da família tinha que vir comigo, porque eu não posso morar sozinha, preciso de suporte. Decidi fazer o ENEM de novo, e eu passei em medicina na tão sonhada UFRN. E sim, na segunda vez eu usei a cota PCD.

Comecei a usar o TikTok sem muitas pretensões, fui me interessando mais e decidi criar uma conta para falar da minha vida. Comecei a fazer os vídeos, e notava que tinha algumas visualizações, e foi só assim que comecei a criar conteúdo na internet. É muito divertido, eu adoro.

Quando e por que você começou a gravar conteúdos para o TikTok?

Eu entrei no TikTok pela primeira vez no início da pandemia, como muita gente. Até então eu me divertia fazendo pequenas edições de desenhos que eu gostava, mas sem intenção de me tornar uma criadora de conteúdo. Em agosto de 2021, eu decidi que seria uma boa ideia falar sobre a minha vida, a minha vivência como autista e o meu trajeto para entrar em medicina. Mesmo com vergonha e medo, comecei a gravar sobre o dia a dia, fazia lives estudando para o Enem, e hoje estou aqui.

Seu conteúdo é muito didático explicando as características do autismo e mostrando também atividades cotidianas. O que a amplificação da sua voz e o impacto do conteúdo, através da plataforma, significam para a sua vida?

A minha visibilidade no TikTok impacta minha vida em vários quesitos. O mais importante é que eu estou trazendo conscientização e desmistificando um estereótipo do que é uma pessoa autista, e estou mostrando que nós podemos estar em qualquer lugar, o que é muito legal pra mim. Eu fico muito feliz quando me reconhecem na rua e dizem que eu sou uma inspiração, ou que passaram a entender melhor um filho/aluno depois de assistir aos meus vídeos, ou quando uma pessoa diz que buscou o diagnóstico depois de me conhecer. Isso é muito gratificante!

Você considera o TikTok um lugar acolhedor para produzir conteúdo? Como você enxerga isso?

Sim, pois no TikTok eu recebo muitas mensagens positivas das pessoas, e há ferramentas para filtrar comentários negativos.

Quais vídeos você mais gosta de gravar?

Antigamente eu gostava de gravar vídeos atuando situações que já passei, por exemplo: fiz o Enem e tive uma crise por ter ficado sozinha após a prova, então em casa eu reproduzi essa situação para ilustrar para as pessoas como foi. Produzir esse tipo de vídeo era bom, mas depois que as minhas aulas começaram não tenho mais tempo, então eu foquei apenas em rotina e cotidiano, e de vez em quando eu gravo algum vídeo contando alguma experiência.

Qual conselho você daria para o público dentro do espectro autista que tem vontade de começar a criar na plataforma?

Continue. Eu diria que a pessoa deve continuar, mesmo que não se ache interessante. Autistas têm o mesmo direito e a mesma capacidade do que qualquer um, então não devemos nos intimidar ou ter vergonha, muito menos pensar que não merecemos estar ali. O TikTok é para todos, e os autistas podem ser criadores também.

Você é estudante de medicina. Qual seu sonho na área da saúde?

Eu desejo ser uma médica excelente. É natural que, devido ao meu conteúdo, eu me torne uma psiquiatra, mas ainda não tenho certeza se é a área que eu quero seguir. Como ainda estou no início do curso, decidi que vou estar aberta a conhecer todas as áreas a fundo antes de tomar a minha decisão definitiva. Independentemente da minha residência, eu amo estudar! Então não vou sair da vida acadêmica até que eu tenha concluído o doutorado. Meu objetivo depois é ser voluntária em projetos que ajudem as pessoas em locais isolados. Ah, e também quero ter uma clínica minha.

Por meio do TikTok você consegue enxergar mudanças positivas em relação à conscientização do autismo?

Sim, pois a visão do que é o autismo está cada vez mais desmistificada. Os autistas passaram a ter voz própria e começaram a falar de si mesmos, expondo suas dificuldades. Não só os autistas, os familiares também passaram a expor a rotina, e esse conteúdo é muito enriquecedor, pois mostra a convivência com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) por várias perspectivas. Sendo assim, a neurodiversidade está cada vez mais "diversa", com vários rostos, personalidades, regiões, etc. Agora é possível notar com facilidade que cada autista é único, e cada um tem seu próprio desenvolvimento e a sua própria história.

Quais criadoras te inspiram no TikTok?

Eu gosto muitíssimo da @Elisangela.Dora, mãe da Fefe. Fernanda é uma menina de 7 anos autista nível 3 de suporte que está falando suas primeiras palavras agora, graças aos estímulos incansáveis da mãe.

Também gosto muito da Morgana Secco. O conteúdo dela não é sobre autismo, mas ela se comunica muito bem e mostra a vida de forma real e leve ao mesmo tempo, e eu me inspiro nela, pois, apesar das dificuldades da vida real, quero transmitir essa leveza também!

Uma parte do seu conteúdo é dedicada a mostrar sua rotina de estudos. Sente que mostrar seu esforço consegue influenciar parte do seu público a buscar mais conhecimento?

Eu acho que sim, pois é assim comigo também. Quando vejo algum criador estudando e dedicando um momento de sua vida a crescer intelectualmente ,eu me sinto motivada a seguir o mesmo exemplo, e eu quero passar isso às pessoas que me assistem no TikTok. Eu não tive uma trajetória fácil, mas consegui chegar no curso dos meus sonhos e na universidade dos meus sonhos, então eu espero que eles percebam que tudo é possível e que estudar é muito importante.

Em que momento você percebeu que tinha se tornado uma criadora? O que isso significou para você?

Eu percebi que realmente sou uma criadora quando o TikTok postou a minha página como uma das referências de Pessoa com Deficiência. Foi muito, legal, me senti uma famosa.

Como é a sua rotina de gravação e a conciliação entre os vídeos para o TikTok e o estudo?

É tranquilo, pois eu gravo o meu dia na faculdade, então são atividades complementares! Eu tenho a ajuda do meu irmão para gravar os vídeos e nós estudamos no mesmo campus, o que facilita muito. Normalmente eu chego na faculdade às 07h30 e já começo a mostrar o meu dia, e durante as atividades que se seguem (aula, almoço, intervalo, laboratório etc.) A gente vai gravando, ou com ajuda ou sozinha, depende se meu irmão consegue me acompanhar ou não. Ser criadora encaixa perfeitamente, pois sei que muitas pessoas têm curiosidade de como é a rotina de uma pessoa que estuda medicina. No fim do dia, quando chego em casa, meu irmão edita o vídeo e eu narro, e depois vou dormir.